João de Deus Medeiros - "Sobre caça e a modernidade do Parlamento brasileiro"

Artigo de opinião pessoal do Conselheiro João de Deus Medeiros

O Mundo foi criado para o bem do homem e as outras espécies devem se subordinar a seus desejos e necessidades. A natureza nada fez em vão, tudo teve um propósito. As plantas foram criadas para o bem dos animais e esses para o bem dos homens, já dizia Aristóteles. E foi além: os animais domésticos existem para labutar, os selvagens para serem caçados. Para os estoicos a natureza existe unicamente para servir os interesses humanos. A Bíblia, por sua vez, decreta que, após o dilúvio, Deus renovou a autoridade do homem sobre a criação animal:

Temam e tremam em vossa presença todos os animais da terra, todas as aves do céu, e tudo o que tem vida e movimento na terra. Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. Sustentai-vos de tudo o que tem vida e movimento (Gênesis, IX, 2-3).

O homem era o fim de todas as obras de Deus; o homem pode ser visto como o centro do mundo ponderou Francis Bacon. Quando os animais tornam-se incômodos, declarava Henry More no século XVIII, os homens tem o direito de contê-los, “pois não há como discutir que nós somos mais valiosos que eles”. Mesmo Santo Agostinho e Tomás de Aquino palpitaram sobre o tema, esclarecendo que o sexto mandamento, contra o assassinato, não valia para os não humanos. Influenciados pelo cristianismo ocidental, não há dúvidas que os principais expoentes do início do período moderno adotavam uma postura intrinsecamente antropocêntrica. Civilização era uma expressão umbilicalmente associada à conquista da natureza, reforçada pela negação cartesiana da existência da alma nos animais, equiparando esses seres inferiores a meros autômatos. Havia, para Descartes, uma diferença qualitativa total entre o homem e o ser bruto. A modernidade foi construída sob bases morais, religiosas e educacionais onde o senso de civilidade e refinamento tinham como objetivo elevar os homens acima dos animais.

Permito-me essa breve digressão introdutória porque não há como avaliar o Projeto de Lei Nº 6.268, de 2015, de autoria do Deputado Valdir Colatto, sem considerar o contexto em que transitam autor e defensores dessa proposta. Colatto, um expoente do modernismo extemporâneo, nasceu em Lagoa Vermelha, pequeno município do Rio Grande do Sul conhecido como Capital Nacional do Churrasco; é deputado federal (PMDB-SC), técnico agrícola, engenheiro agrônomo e coordenador da Comissão de Direito de Propriedade. Adepto ferrenho do Bacon, me refiro aqui ao Francis, Colatto é daqueles que se dizem defensores da natureza, porém sempre colocando o homem em primeiro lugar. Não por outra razão apresentou o PL 6268, dispondo sobre a Política Nacional de Fauna, definindo princípios e diretrizes para a conservação da fauna silvestre no Brasil. Por um pequeno lapso esqueceu de incluir artigo instituindo a data de aprovação da referida Política Nacional como o “Dia do Caçador”.

Mesmo com o livro do Gênesis dizendo que Deus colocou em nossas mãos todos os peixes do mar, para o Deputado Colatto, peixes, crustáceos e moluscos estão fora da Política Nacional de Fauna. A essência do modernismo sempre distinguiu bichos e bichos. Por certo, crente na interpretação que na verdade todos os animais o Criador colocou em nossas mãos, a lei terrena diz obviamente que poderemos manejar a fauna silvestre in situ, e comercializá-la. Por outro lado, para implantar um programa de proteção de espécie ameaçada de extinção precisaremos de autorização do órgão ambiental competente. Não esqueçam que uma besta, mesmo ameaçada de extinção, pode ser um animal nocivo, e nesse e em outros casos a eutanásia da fera é admissível. Impulsionar a caça para proteger cultivos agrícolas foi saudada como medida moderna na Inglaterra de 1533, com leis paroquiais remunerando caçadores, conforme as necessidades agrícolas dominantes. Assim caminha nosso agro, pop e moderno. A propósito, algo um tanto incoerente surge no PL: a eutanásia dos bichinhos resgatados em áreas de empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental também será admissível. Resgatar para matar? Será que entendi bem? Temam e tremam criaturinhas, pois isso não é tudo: Se aprovada, a Política Nacional de Fauna ainda nos dará outras providências como a licença para a utilização, a perseguição, o aprisionamento, a manutenção, a caça, o abate, a pesca, a apanha, a captura, a coleta, a exposição, o transporte e o comércio de animais da fauna silvestre brasileira, bem como para modificar, danificar ou destruir ninho, abrigo ou criadouro natural, bem como para realizar qualquer atividade que venha a impedir a reprodução de animais da fauna silvestre brasileira, afinal, após o dilúvio Deus reafirmou nossa autoridade sobre o mundo natural. Mas atenção, você não poderá abater o bichinho com visgos, atiradeiras, fundas, bodoques, veneno, incêndio ou armadilhas que maltratem o animal; se vai matar mate-me logo. Armas a bala, até pode, porém afaste-se ao menos três quilômetros de qualquer via férrea ou rodovia pública; e se o calibre de sua arma for 22 trate logo de fazer um up grade, pois com esse calibrezinho você só está autorizado a matar bichinhos do tamanho de uma lebre. Um dado preocupante com essa Nova Política de Fauna é o risco iminente de invasão dos núcleos urbanos pela bicharada, já que nesses espaços eles estarão a salvo. Preparem-se prefeitos, centros de triagem e de acomodação de animais silvestres serão mais do que nunca necessários, se não quisermos conviver com bolsões de bestas selvagens na periferia de nossas cidades tão sustentáveis.

Saudoso das reservas de caça de nossos ancestrais europeus, o igualmente nobre deputado prevê que poderemos usar cães para caçar em unidades de conservação da natureza, tendo por fim a não menos nobre missão de produzir ciência. Você não entendeu mal, o PL não esqueceu das Unidades de Conservação da Natureza. Com ciência pode. Colatto esqueceu também de acrescentar parágrafo exigindo traje completo, com jaqueta de tweed, terno e gravata. Obviamente que, num período de crise na economia, e ciente do preço absurdo do cafezinho com pão de queijo nos aeroportos nacionais, bem como a dificuldade em encontrar caviar para abastecer nossos alforjes, o Deputado Colatto não se furta a declarar que “Não se considera infração o abate de animais da fauna silvestre para fins de subsistência”.

Diligente, e ciente da relevância de sua missão para a reafirmação do poder e soberania do homem sobre o mundo natural, Colatto tratou de revogar a lei 5.197/67, aquela lei antiquada e caduca, que dizia que os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha. Por fim, uma esperança paira no ar. Com o luxuoso auxílio do Deputado Colatto, pelo menos na relação com os bichos nos livraremos de um Estado arcaico, autoritário, comunista, que se insurge até mesmo contra o divino direito de propriedade, se arvorando dono dos bichos.

Você pode até achar estranho tudo isso, mas talvez você e eu estejamos como pontos fora da curva. A fundamentação moral, religiosa e educacional parece convergir a favor do Deputado Colatto, o que talvez explique suas reeleições sucessivas como deputado. Ajuda a entender como em pleno século XXI, o parlamento brasileiro se torna palco de discussões surreais, onde até mesmo os princípios mais básicos da democracia e do bom senso são vilipendiados rotineiramente, não mais na surdina do universo paralelo em que se tornou o congresso nacional brasileiro.

Colatto é a modernidade esperada por aqueles que não apenas amam o passado, mas que se julgam superiores, escolhidos, ungidos a serem os melhores, os donos de um mundo cujo ideal é se tornar cada vez menos natural. E nem mesmo uma revolução dos bichos, já nos mostrou George Orwell, parece surtir algum efeito. Talvez seja esse o PL que mais simbolicamente posiciona nossos parlamentares tupiniquins frente a sua insistente busca pela eternização de uma moral vitoriana, essencialmente moralista e hipócrita, burguesa e injusta, onde bichos, mas também bichas, mulheres, crianças, trabalhadores podem ser vistos como seres inferiores. E assim retrocede a humanidade.